Introdução
O
ator central na história do desenvolvimento do sistema empresarial
capitalista é o empresário. Para compreender bem como funcionam as
firmas, como elas são criadas, como funcionam, como se desenvolvem e
como vão a falência, é essencial compreender a função exercida
pelo empresário na economia. Entretanto, um estudo dos modelos
formais da firma na microeconomia tradicional não nos oferece muitos
insights sobre esta questão. Não é difícil explicar o porquê da
ausência do empreendedor nestes modelos.
Consideremos
a natureza do modelo da firma. Nele, o agente precisa escolher entre
valores alternativos dentre um número pequeno de variáveis bem
definidas. Ao fazer isso, a firma busca maximizar a diferença entre
a sua receita e seus custos, que podem ser definidos matematicamente
por meio de funções conhecidas. Os modelos formais são em essência
um instrumento de análise de otimização de problemas bem
definidos, e são exatamente estes tipos de problemas que não
requerem um empreendedor para a sua solução (Baumol, 1968). O
agente que resolve este tipo de problema é o que Kirzner chamou de
“maximizador Robbinsiano”, mais um "lightning calculator of
pleasures and pains” vebleniano do que um empresário tomador de
decisões.
Neste
trabalho, o proposto é fazer uma rápida revisão da literatura
econômica que versa sobre o papel do empreendedor em um sistema
econômico, de forma a aprimorar a interpretação histórica do
desenvolvimento das firmas.
1 –
O empreendedor como quem assume os riscos associados a incerteza
A
centralidade da função empresarial para o funcionamento de uma
economia de mercado foi identificado inicialmente por Richard
Cantillon. Pouco se sabe sobre a biografia de Cantillon, mas é
conhecido que o autor fez uma fortuna através de especulação
financeira ao conseguir se aproveitar da Mississippi Bubble criada
por John Law, liquidando suas ações da Mississippi Company antes
que a bolha estourasse (Hébert & Link, 2006). Tendo o próprio
feito sua fortuna pela existência de informação imperfeita dos
agentes, seria surpreendente se Cantillon ignorasse a incerteza e o
risco ao escrever seu Essai sur la nature du commerce en
général.
Para Cantillon, o empresário é o agente que recebe sua remuneração
pela sua tarefa de enfrentar a incerteza difusa no mercado (Hayek,
1985). Os lucros empresariais são consequência de bons prognósticos
das condições futuras de demanda. Dessa forma, Cantillon classifica
dois tipos de classe: os “contratados”, ou seja trabalhadores, ou
proprietários, que recebem uma remuneração fixa, i.e. Salários e
aluguéis; e a classe “empresária”, que recebe uma remuneração
variável, os lucros empresariais, que “vivem pela incerteza”.
(Cantillon, 1959)
Um
dos principais economistas a seguir este tipo de abordagem foi Frank
Knight. Em Risk, Uncertainty and Profit,
Knight define risco e incerteza de forma diferente – o risco é
algo mensurável, isto é, é possível estimar uma probabilidade
objetiva de que um dado evento ocorrerá. O risco, portanto, pode ser
transferido do empresário para outras partes, através de contratos
de seguros, por exemplo. Ou seja, o risco não é algo inerente a
atividade empresarial, ao contrário da incerteza, que é
caracterizada por sua imensurabilidade. Uma aposta no resultado de um
lançamento de um dado honesto é um exemplo claro de risco; uma
aposta nas futuras condições de demanda é um exemplo de incerteza.
Esta diferenciação se desdobra em uma interpretação um pouco
mais refinada do que a de Cantillon em como a incerteza é a geradora
dos lucros empresariais. Um risco não é um determinante de um lucro
(ou perda) empresarial, já que ele pode ser eliminado através de
contratos de seguro. A incerteza, entretanto, não pode ser eliminada
da atividade empresarial, e é ela quem determina os lucros e perdas
advindas deste tipo de atividade. Nesse sentido, Knight segue
Cantillon ao dividir os tipos de rendimentos em dois:
“The
produce of society is similarly divided into two
kinds of income, and
two only, contractual income, which is essentially rent,
as
economic theory has described incomes, and residual income or
profit.”(Knight,
1921)
Essa
divisão na teoria da distribuição de Cantillon e Knight cria uma
distinção inexistente na teoria clássica da distribuição, onde
não existe uma diferença clara entre os ganhos dos capitalistas e
dos empresários. Karl Marx reconhece a existência da mais-valia
extraordinária, que seria análoga aos lucros empresariais advindos
da inovação (que serão discutidos mais a frente); entretanto este
tipo de mais-valia em essência é semelhante aos ganhos normais dos
capitalistas. Na visão knightiana existe uma diferença fundamental
entre os ganhos do capital e os ganhos relativos a boas previsões
empresariais.
Knight
vai além do campo da economia ao propor uma análise social pela
relação do empreendedor e da incerteza. A sociedade, para Knight,
pode ser classificada como uma “organização empresarial”, dado
que todos precisam enfrentar a incerteza de alguma forma. A atividade
empresarial na sociedade “knightiana” é portanto essencial. O
empresário surge então como um agente especializado neste tipo de
atividade, por um princípio smithiano de divisão do trabalho, de
modo que os outros indivíduos possam viver em meio a menos incerteza
(Hébert & Link, 2006)
Essa
visão de que todo indivíduo atua de certa maneira como um
empreendedor também é desenvolvida pelo economista austríaco
Ludwig von Mises. Entender a ação empresarial como a ação frente
a existência de incerteza para Mises acaba implicando que de certa
forma toda ação é empreendedora. Como toda ação humana está
necessariamente inserida no fluxo do tempo, e por isso é em essência
especulativa, agir como um empreendedor, ou seja assumir riscos
associados à incerteza, torna-se o mesmo que agir. Por este motivo,
Mises escreve que o “lucro, no sentido mais amplo, é o ganho
decorrente da ação” (Mises, 2010).
Apesar de
toda ação ter em sua essência um lado empresarial, Mises argumenta
que no âmbito econômico, “(...)empresário significa homem agente
com relação às mudanças que ocorrem nos dados do mercado” e que
“a função específica do empresário é determinar a maneira pela
qual devem ser empregados os fatores de produção”. Por sua vez,
“o lucro e a perda empresarial derivam, em última análise, da
incerteza quanto à futura composição da oferta e da
procura”(Ibid.).
2 –
O empreendedor como um tomador de decisões e organizador da produção
A
capacidade de lidar com a incerteza pode ser vista mais como uma
função abstrata do empreendedor. No entanto, para uma boa análise
histórica também é necessário compreender as características
particulares do empresário real. Existe uma diferença importante
nas capacidades necessárias para ser um “maximizador Robbinsiano”
e um empresário real. A principal qualidade do primeiro é a
habilidade em fazer cálculos – dadas as preferências e as
restrições as quais o agente está submetido, o trabalho do
maximizador é apenas fazer um cálculo para encontrar a solução
ótima. Um empresário que, por definição, precisa enfrentar uma
situação de incerteza não mensurável não sabe exatamente qual
será o resultado de cada uma das alternativas expostas, e por isso
não pode fazer um cálculo da utilidade ótima associada a sua
escolha. Ele precisa tomar uma decisão. Uma decisão não
existe se uma das alternativas é sem dúvidas melhor do que as
outras, como no cálculo de maximização do lucro da firma, na
teoria tradicional. A capacidade de tomar boas decisões é,
portanto, uma qualidade essencial a um empresário propriamente dito.
O
empreendedor como tomador de decisões possui um papel central na
teoria macroeconômica de John Maynard Keynes. As decisões de
investimento e produção são centrais para a estabilidade do
sistema econômico. Com base no princípio da demanda efetiva, Keynes
argumenta que as únicas váriaveis autônomas em uma economia
capitalista são variáveis de gasto, e por isso a renda é sempre
definida a posteriori a partir das decisões de consumo e de
investimento. O comportamento dos empresários é um dos mais
importantes determinantes da estabilidade macroeconômica de uma
economia.
Ao
mesmo tempo, as decisões de investimento tomadas pelo empresário
keynesiano dependem da curva da eficiência marginal do capital, que
por sua vez depende da renda esperada do ativo, um fator subjetivo
que é derivado do “estado da expectativa a longo prazo” (Keynes,
1985). Ou seja, não existe um determinante objetivo de que os
empresários tomarão as decisões corretas que permitam um
crescimento estável da economia. Uma das causas para a instabilidade
inerente do sistema capitalista é derivada do modo como os
empresários fazem suas decisões. Nas palavras de Keynes:
“(...)a
instabilidade econômica encontra outra causa, inerente à natureza
humana, no fato de que grande parte das nossas atividades positivas
depende mais do otimismo espontâneo do que de uma expectativa
matemática(...). Provavelmente a maior parte das nossas decisões de
fazer algo positivo, cujo efeito final necessita de certo prazo para
se produzir, deva ser considerada como manifestação do nosso
entusiasmo (can only be taken as a result of animal spirits) – como
um instinto espontâneo de agir, em vez de não fazer nada -, e não
como resultado de uma média ponderada de lucros quantitativos
multiplicados pelas probabilidades quantitativas.” (Ibid.)
Alfred
Marshall, professor de Keynes em Cambridge, caracterizou as
características que consistiriam na genialidade de um empresário
como a manutenção de um estado de alerta (alertness),
habilidade de coordenar, inovar e vontade de enfrentar riscos. Estas
habilidades não seriam possíveis de aprender via uma educação
formal, mas sim habilidades adquiridas pela experiência (Hébert &
Link, 2006) – o que lembra o conceito de “conhecimento tácito”
desenvolvido posteriormente por Michael Polanyi.
Marshall
via uma categoria adicional aos três fatores de produção da
economia clássica (trabalho, capital e terra), a organização
necessária para coordenar todos estes três fatores, que seria
exercida pelo empresário. Dentro das firmas, a organização se
consolida na hieraquia empresarial e na divisão do trabalho no
interior da empresa (Kerstenetzky, 2004). O empresário marshalliano
aparece como um administrador de negócios ou líder industrial.
Um
importante autor a unir as ideias do empreendedor como um tomador de
decisões e como um agente que precisa enfrentar a incerteza do
mercado foi o economista G.L.S. Shackle. Para ele, as duas questões
estão ligadas fortemente, porque a tomada de decisões involve
improvisações e invenções, ações que só seriam possíveis em
um mundo de desconhecimento e incerteza (Hébert & Link, 2006).
Shackle foi um crítico do mainstream pelo o que ele via como uma
negligência em relação a maior contribuição de Marshall para a
economia, que teria sido colocar o tempo no centro do problema
econômico. E o tempo se desenrolaria em um processo histórico
determinado pelas decisões tomadas pelos agentes no presente. De
certa forma, então, quem faz a história para Shackle são os
empreendedores, que são os tomadores de decisões.
3 –
O empresário e o conhecimento: inovação e descoberta (Schumpeter X
Kirzner)
Até
aqui ficou estabelecido que o empresário é um agente que toma
decisões entre possíveis alternativas sobre a produção e cujos
resultados não são previamente conhecidos devido a existência de
incerteza (e não risco) no sistema econômico. Convém perguntar
como estas alternativas se apresentam ao empresário, isto é, como o
empresário adquire e usa o conhecimento. Em um modelo que traz a
hipótese de informação perfeita, por exemplo, todas as informações
estão disponíveis ao agente, ele apenas precisa escolher um dos
caminhos alternativos. Esta hipótese pode ser útil para a
construção de diversos modelos, mas é irrelevante para uma análise
histórica das firmas e dos empresários. Mais relevante é entender
como o empresário pode produzir informações não conhecidas
previamente. Nesse sentido, é possível identificar duas maneiras
diferentes do empresário fornecer novas informações: a inovação
e a descoberta.
Para
deixar mais claro os dois conceitos, é preciso notar que existe uma
sutil diferença entre o que pode ser chamado de inovação e
descoberta. A inovação é caracterizada pela construção de uma
nova alternativa que não estava disponível anteriormente. A
descoberta é a percepção da existência de um caminho que já
existia, mas que ainda não havia sido explorado. Para ilustrar essas
duas possibilidades empresariais, analisemos de forma breve o
trabalho de dois autores: Joseph Schumpeter e Israel Kirzner.
A
teoria Schumpeteriana sobre o empreendedor e sua atuação na
transformação do sistema capitalista foi bastante influenciada por
Marx, Weber, e pelos austríacos (Menger, Wieser, Bohm-Bawerk)
(Ibid.). Schumpeter parte de uma análise de um sistema que se
auto-reproduz, em um fluxo circular. Neste sistema não ocorrem
mudanças, e todos os produtos produzidos são consumidos no próximo
período, e assim sucessivamente.
Entretanto,
o problema central da economia não é entender “como o capitalismo
administra a estrutura existente, ao passo que o problema crucial é
saber como ele as cria e destrói” (Schumpeter, 1961). O agente que
impulsiona a “creative destruction” capitalista é o empresário
ao introduzir inovações capazes de evoluir as instituições
prévias do mercado.
As
inovações realizadas pela atividade empreendedora podem ser vistos
como a criação de um novo produto ou aumento na qualidade de um
produto, a criação de um novo método de produção, a abertura de
um novo mercado, a captura de uma nova fonte de recursos e uma nova
organização industrial, por exemplo a criação ou a destruição
de um monopólio (Hébert & Link, 2006). Com o tempo a mudança
gerada se dispersa pelo sistema e existe uma tendência a uma volta
ao “fluxo circular”. Para Schumpeter, entretanto, o empresário
mais importante é aquele que quebra os paradigmas e desequilibra o
sistema econômico, e não o contrário. O desenvolvimento econômico
ocorre através destas inovações introduzidas pelos empresários
schumpeterianos.
Algo
importante a se compreender da teoria schumpeteriana de inovação é
sobre a diferença entre esta e o conceito de invenção. Para
Schumpeter, uma inovação não necessariamente representa um aumento
no conhecimento científico da sociedade, assim como um aumento no
conhecimento científico não representa necessariamente uma
inovação. Uma inovação representa uma nova solução bem sucedida
para um problema, ao colocar em prática um método ainda não
tentado antes. Desta maneira, o processo de inovar não é um
processo intelectual, no sentido científico, mas sim um processo de
liderança e tomada de decisões.
Analisemos
agora a ideia do empreendedor como um agente de descoberta, através
do trabalho de Israel Kirzner:
A
teoria de Kirzner foi bastante influenciada por dois autores – por
um lado a visão do mercado como um processo empresarial de Ludwig
von Mises, e por outro a ideia da competição como um processo de
descoberta de Friedrich Hayek. O ponto de partida da análise
Kirzneriana é oposta a de Schumpeter. Enquanto este parte de uma
economia de fluxo circular para depois introduzir o empresário como
fator desequilibrador, Kirzner parte do suposto de que não existe
necessariamente uma economia equilibrada como base. Uma das perguntas
que Kirzner deseja responder ao analisar o papel do empresário é
exatamente como podem existir algum padrão numa economia onde
teoricamente cada agente pode fazer o que quiser. O empresário
kirzneriano atua em um papel oposto ao empresário schumpeteriano;
enquanto este é um promotor de desequilíbrio em uma economia
estável, o primeiro é um promotor de equilíbrio em um ambiente
instável (Vaughn, 1994).
O
empresário também existe como consequência da informação
imperfeita nos mercados, entretanto Kirzner não está preocupado em
explicar o empresário como um agente frente a incerteza, mas sim
como um agente que obtém seus ganhos pela arbitragem. Existem
oportunidades de lucro disponíveis, porém não percebidas, o tempo
inteiro na economia, pelo próprio fato desta economia não estar
operando em equilíbrio, e o empreendedor atua “descobrindo”
essas oportunidades. O lucro empresarial é um lucro de arbitragem
(Kirzner, 2012).
As
teorias de Schumpeter e de Kirzner de forma nenhuma são
incompatíveis. É possível encontrar elementos “schumpeterianos”
no trabalho de Kirzner, e também elementos “kirznerianos” em
Schumpeter. As ideias de inovação e descoberta são parecidas, e o
que as difere é basicamente a visão inicial do funcionamento do
mercado de cada um dos autores.
Conclusão
As
visões apresentadas rapidamente neste trabalho não são mutuamente
excludentes. É possível enxergar elementos da teoria de cada um dos
autores em diferentes momentos históricos e presentes em casos
empresariais distintos. Conhecer um arcabouço teórico plural sobre
um tema apenas enriquece a interpretação histórica sobre este
tema, e é por este motivo que este trabalho (e um estudo da história
do pensamento econômico em geral) se justifica.
Bibliografia
BAUMOL,W.
Entrepreneurship in Economic Theory. The American Economic Review,
vol.58,n2, 1968.
CANTILLON,
R. Essai sur la Nature du Commerce em General, edited with an English
translation and other material by Henry Higgs, C.B. Reissued for The
Royal Economic Society by Frank Cass and Co., LTD, London, 1959
HAYEK, F.A. “Richard
Cantillon” Traduzido por: Micheál Ó Súilleabháin, Journal
of Libertarian Studies, vol.
VII, No. 2, 1985.
HÉBERT,
R & LINK, A. Historical Perspectives on the Entrepreneur.
Foundations and Trends in Entrepreneurship, vol.2, nº4, 2006
KERSTENETZKY,J.
Organização Empresarial em Alfred Marshall. Estudos Econômicos,
São Paulo, v.34, n.2, 2004.
KEYNES,J.M.
A Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda. Abril Cultural,2ed,
São Paulo, 1985.
KIRZNER, I. Competição e atividade empresarial. São Paulo:
Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2012.
___________, Entrepreneurial Discovery and the Competitive Market
Process: An Austrian Approach. Journal of Economic Literature,
vol.35, n.1, 1997.
KNIGHT, F. Risk, Uncertainty, and Profit. Boston MA: Hart, Schaffner
and Marx; Houghton Mifflin, 1921.
MISES,
L. Ação Humana. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil,
2010.
SCHUMPETER, J. Capitalismo, Socialismo e Liberdade. Rio de Janeiro,
Editora Fundo de Cultura, 1961.
VAUGHN, K. Austrian Economics in America: the migration of a
tradition. Cambridge University Press, 1994.
VEBLEN, T. Economics and Evolution, The Place of Science in Modern
Civilization, Nova Iorque, 1919.